Pai

Criado por Letícia Castro em em 02/08/2010

Segunda de manhã. Enquanto a metrópole acordava para mais um típico início de semana de trabalho, toca o telefone em minha casa. Ainda na cama, me levanto devagar para ir até a sala quando o celular, perto de mim, começa a chamar. A voz maternal do outro lado da linha informa incisiva:

- O seu P. faleceu ontem à noite.

Há 12 anos vivíamos com esse sobressalto no coração. Se o telefone tocasse tarde da noite ou cedo de manhã, um fio de pensamento, ainda que remoto, nos remetia ao frágil estado de saúde do querido pai. Atendiamos, torcendo para que nunca fosse a fatídica notícia. Na manhã desta segunda, com todo o pesar do mundo, foi.

O seu P. foi a primeira pessoa que conheci da que seria então a minha nova família. Nosso encontro se deu em uma rodoviária, onde chegava, de mãos dadas com seu primogênito, que acabava de se tornar, durante aquela mesma viagem, meu futuro esposo. Nossa aproximação foi lenta e tímida. Aquela figura a quem eu tanto respeitava, parecia resistir ao meu enorme e sincero desejo de aceitação. Eu precisava ser confirmada por ele, principalmente, pois tinha consciência de que a mão que segurava a minha esquerda era a do seu espelho.

A minha pressa e angústia sempre foi no sentido de mostrar para aquele pai que eu vinha de bom grado e que, pese os tropeços do caminho, o meu coração, apesar de errante, foi verdadeiro e acreditava estar fazendo o melhor para todos. O reconhecimento veio durante uma deliciosa festinha em família, onde ele agradeceu a presença de todos, dos filhos e dos agregados. Indignei-me. Eu não era uma agregada, termo que sempre me soou pejorativo, apesar de legítimo no Direito. Não, eu já o considerava meu pai também. Não entendi que era o seu modo de me dizer que eu pertencia e que ele sabia disso. No meu entender, o carinhoso “aval” veio apenas durante o seguinte diálogo:

- Alô?

- Letícia?

- Oi, seu P.! Tudo bem com o senhor?

- Tudo bem, graças a Deus, e você?

- Tudo bem também.

- Eu estou te ligando porque gostaria de convidá-la para comer uma pizza aqui conosco. Você tem alguma coisa para fazer hoje?

- Não, seu P., eu vou com muito prazer.

- De que pizza você gosta?

- Ah, seu P., eu gosto de tudo, eu amo pizza!

- Ah, é por isso que você está rechonchuda??? E soltamos uma gargalhada estrondosa. Ele nunca soube, mas chorei de felicidade quando desligamos o telefone. Depois me contaram que ele tinha sido carinhosamente repreendido pela família. Foi um dos melhores elogios que já recebi.

Nessa época, o estado de saúde do seu P. já inspirava cuidados. Acometido de um infarto de grande proporção, lutávamos todos física e espiritualmente a cada pequena ou grande crise. Tudo para nós tinha o mesmo tamanho: o sofrimento e a esperança. E assim, fomos passando os anos, pedindo a Deus que se prorrogasse um pouquinho mais.

Deu tempo de tê-lo no meu casamento e de vê-lo conduzir a sua caçulinha dez anos mais tarde. Não deu tempo de dar-lhe um neto e Deus sabe o quanto desejei em segredo, quando, mergulhada em minha ignorância, declarava que não queria ter filhos. Mentira. Muitas vezes vi meus filhuscos sentados em seu colo na cadeira-do-papai, na sala de estar. Na verdade, vi muito mais que isso, mas isso só pertence a nós. A única coisa que sei é que em algum momento do nosso destino eterno, essa cena terá lugar e por ora, sei que estão todos reunidos, esperando a permissão divina.

Falta uma semana para o Dia dos Pais e Deus levou para mais perto de Si o nosso querido pai e exemplo. Eu sempre penso que há um sentido nessas passagens que se dão em datas assim, como a minha amiga querida cuja mãe viajou três dias antes do seu aniversário. No nosso caso, acho que é para reiterar que a vida continua e deve começar outro ciclo, o ciclo em que seremos nós a assumirmos nossas paternidades e disseminarmos o modelo e amor que recebemos. O seu P. me acolheu desde o momento em que me conheceu e o meu coração estremecia de felicidade a cada vez que ele perguntava por mim nos últimos tempos.

Neste 11 de julho, não consegui cumprimentá-lo por seu aniversário. Mas a sabedoria divina me revela hoje que foi melhor assim, já que a sua saúde se debilitara grandemente e acho que fiz o que de melhor poderia fazer nesse instante: uma prece sincera e agradecida por mais uma data comemorada.

E é com o coração nas mãos que venho, mais um vez, agradecer. A esse pai tão amoroso que me deu o presente mais maravilhoso e de cujas mãos alcancei o objetivo máximo de minha vida. Sinto muito orgulho quando entro em meu lar e vejo o nome tão familiar na fachada do edifício. Sinto-me protegida pelo divino e pelo destino que permitiu o reencontro planejado.

Hoje, em outra instância, começa uma nova fase. Uma nova etapa que devemos cumprir na sequência de nossas vidas e uma nova forma de compreensão que precisaremos aprender a decifrar. Sei também que continuamos juntos e seguirei adiante eu também. E o meu coração continuará a irradiar feixes de amor profundo em direção àquela casa, no logradouro onde os antigos tropeiros paravam para dar de beber a seus cavalos. E o sentimento se espalhará pelo interior paulista até alcançar a Pauliceia, de onde nunca saiu, na porta à direita e à esquerda, onde mora o coração.

O número do meu apartamento é 91. Quando entrei nele pela primeira vez, me lembrei de imediato do salmo 91, o salmo de Deus, que minha avó paterna costumava recitar para mim: “Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. (…) Mil cairão ao teu lado e dez mil a tua direita, mas tu não serás atingido. (…) Pois que tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei num alto retiro, porque conheceu o meu nome.” (Salmo 91, 5-7-14)

E assim se cumprirá o que tiver que ser nas nossas vidas, pois o Pai celestial permitiu que aprendêssemos com esses mentores tão amorosos que o único caminho verdadeiro é o que leva ao amor e eu me sinto abençoada pelo ensinamento.

NOTA: O Babel também está de luto, pois perdeu um leitor valoroso que nos acompanhou e apoiou desde o primeiro post. Como devida homenagem, resgatará uma preciosa pauta sugerida por esse brilhante advogado e professor e a publicará assim que a reportagem estiver concluída.

Comentários (7)
  1. Max Martins comentou, em 03/08/2010:

    Oi, Letícia

    Sinto muito pela sua perda.
    Num momento como este é muito difícil dizer algo que possa serenar o coração de quem fica.
    Como amigo virtual e, portanto, distante fisicamente mas ligado a vocês pela admiração e estima, espero que saiba que me solidarizo contigo.

    Um forte e afetuoso abraço!

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  2. Wander Veroni comentou, em 03/08/2010:

    Oi Lê!

    Linda homenagem ao seu ex-sogro, minha amiga. Toda vez que tenho uma notícia de morte também fico assim mais reflexivo sobre a vida. Tb perdi um colega de trabalho ontem e imagino o que vc está passando. Muita força nessa hora, viu. Estou aqui pro que der e vier.

    Beijos ;)

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  3. Mayara Caparroz comentou, em 03/08/2010:

    Letícia, uma vez eu ouvi dizer que as pessoas que nós amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós. Deus está tomando conta dele, deixe que Ele decida, embora seja muito difícil e triste de aceitar.
    Quando nós passamos por momentos como este, é quando devemos nos apegar mais ainda em nossa fé. Gostei muito quando você citou o salmo 91, mostrou que você é realmente uma pessoa de fé, que acredita e confia em Deus. Muito bonito.
    Mesmo que eu não esteja aí do seu lado, sinta um forte abraço meu e conte comigo.

    Beijos, querida amiga!

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  4. Ana Lucia Nicolau comentou, em 04/08/2010:

    Oi Letícia, realmente sinto muito,…
    abs

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  5. Lucaimura comentou, em 10/08/2010:

    Olá Letícia!!

    Lamento a tua perda, o teu texto foi uma belíssima homenagem a uma pessoa muito importante na tua vida.
    Apesar de estar longe fisicamente estou contigo de coração.

    Bjs do teu amigo Luca

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  6. Andre comentou, em 11/08/2010:

    Lê, simplesmente espetacular!
    Impossível conter as lágrimas…
    OBRIGADO mesmo! Em nome de todos os “P”s!

    “When someone you love becomes a memory, the memory becomes a treasure!!!”.

    beijão

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  7. Gatapininha comentou, em 19/08/2010:

    Olá
    Sinto muito a sua perda.
    jokas

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