"A noite em que vimos os Reis Magos": uma tradição diferente contada por quem a viveu de perto

Criado por Letícia Castro em em 06/01/2009

Um argentino morando no Rio. Dia de Reis. Um fusão de tradições, idiomas e vivências na data mais comemorativa do calendário cristão para quem nasceu em países que falam espanhol. ¿Qué te trajeron los Reyes? é a pergunta que mais se ouve ali em todo 06 de janeiro. Juan Trasmonte, do Nemvem Quenãotem, hermanísimo do Babel, conta neste post como era ser criança e esperar pelo Día de los Reyes, com toda empolgação e mistério que a celebração traz. Este é um “metapost” do Babel em homenagem ao amigo, a todos os amigos, ao dia, aos nascimentos e aos olhos que só as crianças podem ter.

A noite em que vimos os Reis Magos*

A noite do 5 de janeiro era sempre única. A véspera da chegada dos Reis Magos despertava em mim uma ilusão incomparável, porque o mistério de Melchior, Gaspar e Baltazar era mais atraente que o do próprio Papai Noel.

Segundo a tradição, deviamos escrever as cartas com os nossos pedidos depois do Natal, e na noite esperada, colocar os sapatinhos na sala e deixar as janelas abertas.

Também era aconselhável colocar água fresca em uma vasilha ou balde e um pouco de capim que os garotos como eu, que morávamos em apartamento, precisávamos colher em alguma praça. Pois os camelos certamente estariam com sede e fome apôs a longa viagem.

Depois seguia a parte mais difícil, a de tentar conciliar o sono. Crianças que são usinas de energia, naturalmente cansadas, ficam nesse dia excitadas como se tivessem bebido dois litros de café. Porque o desejo oculto de todos nós era ver os Reis.

Uma noite, com meu irmão Jorge, resolvemos ficar acordados até eles aparecerem. Quando mamãe mandou todo mundo dormir, fizemos aquela comédia, disfarçamos a situação e quando ela foi embora, ficamos os dois de joelhos sobre a cama dele, debruçados na janela.

Se bem que não havia tanto céu para enxergar -cidade grande é assim- ficamos por horas olhando e jogando conversa fora, tecendo palpites.

“Será que eles entram por essa janela?”

“Qual é o mais alto deles?”

“Para onde é que eles vão primeiro?”

Nem sei o tempo que ficamos formulando essas perguntas retóricas, inventando histórias.

Deve ter sido uma estrela fugaz ou a força do desejo, mas até hoje meu irmão e eu juramos que essa noite vimos os Reis Magos atravessar o céu.

Não lembramos do que aconteceu depois, mas com certeza o sono nos venceu e na manhã seguinte achamos os presentes que meu pai tinha colocado junto aos nossos sapatos.

Depois a gente cresce e a verdade vem implacável: os Reis Magos não existem, são os pais que dão os presentes.

A gente cresce mais e vem o revisionismo histórico: os tais Reis nem eram três, ninguém sabe a certo quantos eles eram. Parece mesmo que eram astrólogos que vinham do Oriente para conhecer o rei dos judeus nascido; que uma estrela guia os conduziu até Belem e que traziam presentes à altura de um deus: ouro, incenso e mirra. São diferentes versões narradas sobre o nascimento de Jesus, na verdade o único que contou a tal visita no evangélio foi Mateus.

O outro mistério pra gente também foi develado: um dos reis era negro porque eles vinham de muito longe, de países diferentes.

E os camelos? Só criança para acreditar que esses camelos podiam voar. Mas também se eles eram Magos mesmo bem podiam fazer os camelos voarem.

Mas como a gente continuou crescendo, depois descobrimos que aqui era bem dificil achar um negro para ficar fantasiado de Baltazar na porta de alguma loja de brinquedos. Depois da febre amarela e a Guerra do Paraguai, os negros viraram uma raridade.

Nos meus anos no Brasil, senti falta desse ritual do 5 de janeiro, de ver as crianças com os rostos acessos pela emoção. Em troca, conheci no interior do Rio as folias dos Reis.

Mas a tradição cultural não é brincadeira. Nos países hispano-falantes os Reis Magos têm mais ibope que Papai Noel, que é de raiz anglo-saxona.

E na medida do que fomos crescendo, fomos perdendo a inocência. Quando uma pessoa é ingênua por aqui costuma se dizer que “acredita nos Reis Magos”.

Meu irmão e eu já sabemos que os Reis Magos não existem, mas que naquela noite nós os vimos, disso temos certeza.

Reprodução do óleo La adoración de Los Reyes Magos, de El Greco (1568)”

*Escrito por Juan Trasmonte para o Nemvem Quenãotem
Aqui se fala português

Comentários (11)
  1. Fernanda Veiga comentou, em 06/01/2009:

    lembro até hoje quando descobri que era meu pai o to falado papai noel.. :/

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  2. Rozangela comentou, em 06/01/2009:

    Qd criança minha mãe nos arrumava e acolocava uma mesa no quintal com comida e ficávamos esperando a Folia de Reis chegar, eles cantavam, dançavam e comiam conosco. Tempo bom, lembranças melhores ainda!!! Belo post esse, Letícia. Beijinhos!!

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  3. Paloma comentou, em 06/01/2009:

    Reis Magos…
    Amei esse post!
    Parabéns, Letícia.

    http://www.doisps.blogspot.com

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  4. Wander Veroni comentou, em 06/01/2009:

    Oi, Letícia!

    Puxa vida, que relato bacana sobre o dia de Folia de Reis. Aqui em Minas, essa data tem um significado totalmente diferente e muito apegada a cultura afro. Quando chega a noite, vamos a rua, esperar pela Folia de Reis. Bom, no meu bairro, infelizmente não tem. Mas nos bairros Caiçara, Aparecida e Santa Tereza essa tradição vive ainda.

    Quando a minha vó era viva, e eu ainda pequeno e fantiasiando tudo, ia para casa dela nesta data para ver a Folia de Reis passar nas ruas. As danças, a música e o colorido das roupas. Inclusive, o Caíque, aquele meu amigo que você conheceu, toca na Folia do bairro dele.

    Tô aqui contando a minha história e viajei na maionese, né. Mas adorei saber que a mesma data tem um significado tão distinto para os nossos hermanos de língua espanhola.

    Beijos

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  5. Luiz Antonio André comentou, em 06/01/2009:

    Oi Letícia
    Parabéns pelo post. Não conhecia esta forma de comemorar o dia de Reis.
    Sou descendente de açorianos e a festa é diferente é o chamado Terno de Reis. Um grupo sai cantando de casa em casa durante do inicio da noite até amanhecer o dia.

    Abraços

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  6. Rodrigo Piva comentou, em 06/01/2009:

    Fora sua belíssima aula, este texto me lembrou de algo importantíssimo! É o dia de desmontar a árvore! hehehehe

    Beijão, Lê! :-)

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  7. Juan Trasmonte comentou, em 06/01/2009:

    Valeu Lelê!
    Muito obrigado pela homenagem e o carinho.
    Foi um lindo “regalo de Reyes”.
    Besos

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  8. Jorge Fortunato comentou, em 06/01/2009:

    Vivendo e aprendendo. Desconhecia essa tradição de aguardar presentes dos Reis Magos. Espero que eles tenham deixado algum para mim também. Tudo que sei sobre o dia de Reis é que existe uma tradição de cantadores de viola que saem nas Folias de Reis e tocam nas casas, fazem refeição ou lancham (algo assim)…ah e o Bolo de Reis, que hoje não comi…deveria ter ido ao Centro da cidade comprar na Casa Cavé…
    bjs

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  9. Milouska comentou, em 08/01/2009:

    Olá, Letícia!

    Em Portugal há muito que não se festeja o dia de Reis. E para nós, as prendas eram trazidas pelo Menino Jesus que acreditávamos descer pela chaminé e não pelo Pai Natal. Este é uma versão relativamente recente. A tradição já não é o que era…
    Beijinhos,

    Milouska

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  10. carla m. comentou, em 09/01/2009:

    Meu pai nasceu no dia de reis comadre!

    Então lá em casa se mantém uma velha tradição dos descendentes de italiano, que está se perdendo. Minha mãe faz doces de reis, são uns biscoitões com cobertura de glacê e confeitos. Claro que rolam outras coisas, mas ela faz sempre os biscoitos. Se tiver filhos, farei os biscoitos também.

    Mas é tão lindo ver que em outras partes do mundo ainda são os reis magos os portadores dos presentes…

    beijocas

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  11. Daniela Figueiredo comentou, em 09/01/2009:

    Oi, Letícia. Nunca festejei o dia de Reis. Mas minha tia uma vez fez o Bolo dos Reis, com aliança, moeda e outros apetrechos envoltos em papel alumínio ficavam escondidos no bolo, quem comesse o pedaço do bolo em que estivesse a aliança, por exemplo, iria arrumar namorado naquele ano. E de brincadeira fizemos vários apetrechos, como o avião, que significava viagens, no nosso conceito. Beijos.

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