Procura-se peça de reposição

Criado por Letícia Castro em em 25/06/2008


Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU, com Ruth Cardoso e FHC (Fonte: IFHC)

No Brasil de 2008, faltam peças de reposição. De material humano. Há alguma coisa estranha no ar. Mal chegamos ao meio do ano e já perdemos, pelo menos, quatro figuras insubstituíveis. O que o céu tem contra o país para ceifar da nossa convivência Zélia Gattai, Jefferson Peres, Jamelão e agora D. Ruth? Sim, eles já tinham idade avançada, uns mais, outros menos, já haviam contribuído dando o digno exemplo, mas será que o mesmo céu não vê que simplesmente não temos quem colocar no lugar?

Na noite desta terça-feira, demorei alguns segundos para entender a manchete do portal G1 de notícias, um dos primeiros a dar a informação: “Morre ex-primeira dama Ruth Cardoso”. Tive que associar o nome à foto e, mesmo assim, ainda me custou acreditar. Eu tenho o péssimo costume de rir de nervosismo quando alguém muito importante ou querido ou até da família morre. É um defeito que preciso trabalhar, mas acontece. No entanto, ontem, o riso nervoso foi engolido com raiva e fiquei espantada, indignada, pois havia acabado de comentar com alguém que estavam fazendo “um limpa” no país neste ano. Como se não bastassem todas as catástrofes naturais que ocorreram desde 1º. de janeiro. Mas a D. Ruth? Foi o mesmo baque da morte de Covas, irreparável, irreversível. Sublimar a sensação do oco, do lugar não preenchido é tarefa hercúlea. Eu, nesse momento, não consigo e vou explicar por quê.

Ruth Corrêa Leite Cardoso nasceu em Araraquara, no interior de São Paulo e tinha 77 anos quando faleceu vítima de uma arritmia, às 20h40 de ontem, em sua casa, no bairro de Higienópolis, São Paulo. Esposa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso há 55 anos, era antropóloga, educadora, autora de vários livros e respeitada no Brasil e no exterior. Não gostava que se referissem a ela como “primeira-dama” e o próprio FHC fez questão de alertar que D. Ruth seria uma primeira-dama diferente, pois não gostava de ostentação, do glamour da posição, não era exageradamente preocupada com a aparência, era independente e profissional.  Distante do exemplo de mulher fútil e superficial, estereótipo tão bem incorporado por sua antecessora, D. Rosane, a “bela” (já que Itamar Franco era divorciado). Ruth Cardoso era o exemplo de mulher que eu e as estudantes da minha geração, que aos 16 anos votamos pela primeira vez para eleger um presidente, queríamos seguir. Essa dama, que considerava irrelevante a sua ordem na fila, inflamou os nossos corações inúmeras vezes por mostrar que uma mulher brasileira poderia ser tão respeitada e reconhecida pelo seu trabalho, que não era o do seu marido, que não era ajudar o seu marido, mas que representava a mesma causa que a dele.

Nunca em nenhum país do mundo houve um casal tão preparado para governar e que o tenha feito tão bem, pese as condições adversas. Ruth e Fernando foram, na melhor concepção do termo, a realeza no Planalto. E aqueles que, infelizmente, não tiveram a oportunidade de viajar para o exterior e ver-se reconhecido brasileiro no reflexo desses dois devem saber que ser brasileiro na década de 90 era um luxo. Era ir para a Europa e ter os franceses dizendo, “Mas, agora vocês estão bem, hein? Com o presidente que tem…”. Era ir à Santiago e conhecer a um ex-assessor de FHC, na fase chilena de seu exílio, e ouvi-lo dizer do orgulho de ter trabalhado para um homem tão grande e da dignidade e companheirismo de sua mulher, excelente professora. Era ter o casal Clinton como amigos íntimos e, consequentemente, ter as portas da Casa Branca abertas para o país. Era dormir no Palácio de Buckingham, com a Rainha Mãe achando que um pássaro feio, dado de presente de última hora, era um legítimo jaburu e tê-la repetindo a palavra, com sotaque inglês, toda vez que olhava para o presidente: “Jaburu, jaburu!”. O luxo no caso era o respeito, a imponência e o reconhecimento de um Brasil que começava a ser levado a sério, ao contrário do que o deGaulle dizia. E seriedade traz credibilidade, investimentos, apoio e parcerias, tudo o que “nunca antes na história desse país” havia acontecido e que começou ali, com esse casal, nos 90.

Assim sendo, aos urubus de plantão, perder a professora Ruth, catedrática de algumas das universidades mais prestigiadas do Brasil e do exterior, é sofrer uma derrota incontornável na causa da educação, único, que se leia bem, ÚNICO caminho para o crescimento e salvação de um povo (japoneses e alemães que o digam). Perder a antropóloga Ruth é não ter mais a mente brilhante que desenvolveu programas sociais dignos como o Comunidade Solidária (no qual continuava trabalhando agora como diretora da Oscip Comunitas) em 1995, esse sim o verdadeiro programa assistencial que instaurou, pela primeira vez na história desse país, a distribuição de renda para as classes menos favorecidas, desde que se seguisse uma série de critérios, atualmente descartados em suas novas versões. A D. Ruth, portanto, é a verdadeira “mãe” das políticas sociais do Brasil, não se deixem enganar por mães oportunistas que apareçam pelo caminho. Estas não passam de madrastas más que nos querem envenenar com falsas maçãs. Perder Ruth Cardoso é perder uma grande dama e um ser humano único que, com a postura discreta e o engajamento vigoroso, ajudou a mudar a história recente desse país. E dias melhores vieram e dias melhores virão, sempre que haja uma adolescente (ou um adolescente) que, ao conhecer sua história, inspire-se em se tornar uma peça de reposição.

Comentários (34)
  1. Catarino comentou, em 25/06/2008:

    Letícia, é uma grande perda. Estamos ficando sem ídolos e não há formação de novos intelectuais.

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  2. Deleite Crônico comentou, em 25/06/2008:

    Uma enorme perda.

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  3. SILVIA comentou, em 25/06/2008:

    Oi minha filha,

    Estamos mais orfãos agora com a perda de uma das mulheres mais inteligente desse país. Orfãos da sabedoria, do conhecimento, da simplicidade e da humildade que só uma GRANDE DAMA como ela, poderia ter. O Brasil está mais pobre hoje, mais uma de suas riquezas se foi. Que Deus dê a D. Ruth o merecido descanso, e a seus familiares, o consolo. TRISTEZA é o sentimento que fica.

    beijos do meu coração para o seu coração,

    su mamita

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  4. Roberta comentou, em 25/06/2008:

    É sempre trágico, perder uma pessoa importante, mas teus ensinamentos e sua determinação, com certeza levaram a muitos jovens a segui-la, afinal, todos desejam um Brasil capaz( ou pelo menos a maioria), pode chegar a ser uma utopia mas muitas “Ruths” ainda iram surgir.

    Parabéns pelo blog!

    ;*

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  5. Elayne Portela comentou, em 25/06/2008:

    Olá…
    Verdadeiramente uma perda irraparável. Grande mulher! Grande exemplo!

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  6. Wander Veroni comentou, em 25/06/2008:

    Oi, Lê!

    Pode até parecer estranho mas eu não conhecia a história da D. Ruth Cardoso com tanta profundidade como vc acabou de contar. Claro, sabia que era socióloga, esposa do FHC, mas desconhecia esse ativismo político e social que ela representava.

    Também me preocupo com essas perdas. No país que vivemos, com pouca gente instruída e desisnteressada por política, os intelectuais viraram raridade. Tenho medo do nosso futuro: o pensamento apolítico está deixando a sociedade sem valores, crenças e esperança. A impunidade está ganhando voz e vida própria.

    Belo post minha amiga…cheio de reflexões.

    Bjs,

    =]
    _____________________________
    http://cafecomnoticias.blogspot.com

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  7. Fernando comentou, em 25/06/2008:

    Nossa que estranho,vc rindo quando alguém morre…hehehe (olha eu rindo..)

    Sobre a D.Ruth sempre admirei essa senhora,teve grande importancia na minho opinião para nosso país luso-tupiniquim.

    passa lá no meu blog tb!

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  8. Sarinha comentou, em 25/06/2008:

    è verdade.. admiravel mulher. grande perda!

    Passa lá no meu blog.. vi o recadinho no orkut..

    bjus

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  9. Sammyra Santana comentou, em 25/06/2008:

    Triste, triste pela morte de D. Ruth também. ela era uma mulher de muita classe e grande inteligência!
    Realmente, tá faltando peça de reposição aqui no Brasil…
    concordo plenamente!

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  10. Edegard + Amigos comentou, em 25/06/2008:

    Ola Amiga
    Realmente sei do seu sentimento, pois também senti uma sensação de perda muito grande.Ela foi e sempre será um espelho de dignidade e exemplo para nos todos, pena que pelos candidatos politicos que temos não vemos outra igual.
    Um grande abraço.

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  11. ED CAVALCANTE comentou, em 25/06/2008:

    RUTE CARDOSO ERA AQUELE TIPO DE PESSOA QUE VOCÊ, MESMO QUE NÃO GOSTE DELA, É FORÇADO A RESPEITAR. NO CASO, EU GOSTAVA E RESPEITAVA. RESPEITAVA PELA SERENIDADE, DISCRIÇÃO, PELO SEU TRABALHO SOCIAL SEM GRANDES PROPAGANDAS. UMA INTELECTUAL NAMELHOR ACEPÇÃO DA PALAVRA. UMA GRANDE PERDA!

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  12. Bru comentou, em 26/06/2008:

    Também entrei em choque com a notícia, admiro muito Dona Ruth, ela representa tudo o que uma primeira dama deve ser e era a elegância em pessoa. Realmente perdemos muita gente boa esse ano tem ainda o Artur da Távola, outra grande perda.
    Muito bem escrito o texto.

    emc2.blogger.com.br

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  13. Aventureiro X comentou, em 26/06/2008:

    Obrigado pela visita Leticia.
    Achei seu blog muito inteligente, bem articulado, e como você tbm fiquei triste pela morte da D.Ruth. é um grande nome da nossa história (diferente de outras apagadas damas…)

    Forte abraço.

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  14. Une Petite Femme comentou, em 26/06/2008:

    eu estava comentando com a minha irmã sobre isso, uma mulher discreta, inteligentíssima, uma grande perda. mas peça de reposição, creio não haver…

    bjs

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  15. porquetaoserio comentou, em 26/06/2008:

    Um grande perda…
    uma ex-primeira dama que fez muito amis do a atual…
    uma mulher ke estava muito alem de plasticas,aviões e roupas caras…

    Responder
  16. Fabio C. martins comentou, em 26/06/2008:

    Perder ídolos (masculinos) é algo que já estamos acostumados, mas perder uma mulher como D. Ruth é algo que não será fácil de repor.

    Hoje temos políticos de plantão, substitutos, que estão lá pra tomar a decisões independentes do tema. Sim, digo substitutos, pois se vc pode substituir alguém na tomada de decisão, então o substituído de nada trará de novo.

    Mas enfim, vamos seguindo. Só espero que nesse final de ano não tenhamos outras perdas como essa.

    Abraços
    _________
    Folhetim On Line

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  17. Yeda comentou, em 26/06/2008:

    Ótimo texto!
    Realmente, Ruth Cardoso foi um grande exemplo de mulher. E deixará mais que saudades, deixará exemplos a serem seguidos.

    Responder
  18. Alcione Torres comentou, em 26/06/2008:

    Pois é, o Sarapatel mudou o layout. O antigo estava muito pesado e o pessoal estava reclamando.
    Obrigada pela visita!
    Bjos!

    Responder
  19. Jomar comentou, em 26/06/2008:

    Esta é uma perda irreparável para a sociedade brasileira.

    Obrigado pela visita lá no blog e saiba que todas as quintas feiras temos uma nova série completa. A semana passada foi a série Trindade.

    Abraço.

    Responder
  20. ED CAVALCANTE comentou, em 27/06/2008:

    LETÍCIA,VC POSTOU O LINK DO SEU BLOG ERRADO NO FORUM DO ORKUT
    http://babeltpontocom.blogspot.com
    CHEGUEI AO SEU BLOG PRA COMENTAR POR UMA POSTAGEM ANTIGA. DPS CONFERE OS FÓRUNS ONDE VC POSTOU, PODE TER REPETIDO O ERRO. O POST ACIMA JÁ COMENTEI! BJO!

    Responder
  21. Juan Trasmonte comentou, em 27/06/2008:

    Eu não gosto de ler a palavra “ídolos”, pois na política não precisamos de ídolos mas de exemplos de integridade. Tenho as minhas questões com FHC, porém tiro o chapéu para o intelectual brilhante. Já D. Ruth tinha a qualidade que todos os que estão lá em cima deveriam perseguir, essa humildade de fugir dos holofotes e essa grandeza de pensar e fazer para um país possível projetado no futuro.

    beijos, companheira

    http://nemvem-quenaotem.blogspot.com/

    Responder
  22. Molly comentou, em 27/06/2008:

    lele, vc sempre escreve mto bem.

    Responder
  23. Grilo Pensante comentou, em 27/06/2008:

    O mundo perde QI com a perda dele.

    Responder
  24. Luciano comentou, em 27/06/2008:

    Não sei explicar como a perda da D. Ruth me afeta tão diretamente… Agora, fazendo uma reflexão, acho que sei sim! Pessoas desse gabarito me remetem à época em que tive contato com meus professores de escola estadual. Sim, vejo claramente que é isso porque via na D. Ruth aquelas características da grande maioria dos professores de outrora, simples, corretos, com desejo de ensinar. É… os tempos são outros, a degradação do ensino público de uma forma geral, salvando-se, sempre, as muitas exceções, impossibilita que novas peças de reposição tenham exemplos próximos para seguirem.
    Beijo e continue sendo um exemplo a ser seguido.

    Responder
  25. Lucas Fernandes comentou, em 27/06/2008:

    Letícia,

    O país realmente perdeu com a morte de Ruth Cardoso. Uma mulher simples, engajada e brilhante. Uma defensora da causa educacional como agente transformador da sociedade. E quanto as peças de reposição, cabe a esta geração se postar de forma vivaz e trabalhar em benefício da nação, carente de homens e mulheres célebres.

    Parabéns!

    ___________________________________
    http://semfronteirasnaweb.blogspot.com

    Responder
  26. dbaskt comentou, em 27/06/2008:

    True….we here from America also feel sorry for the lost of such a brillant figure.

    http://www.locupletado.wordpress.com

    Responder
  27. Fernando comentou, em 27/06/2008:

    é o meu terceiro comentário neste post..
    depois dos dois eu nem tenho mais oq flar…hehe
    só esperar pelo próximo post..

    Responder
  28. Jorjão comentou, em 27/06/2008:

    Foi uma grande perda, mas discordo com vc sobre o casal FHC e Ruth, eles não eram a perfeição notoriamente dita, mas devemos respeitar o texto, que está excelente!

    Responder
  29. Letícia Castro comentou, em 27/06/2008:

    Fernando, tem um monte de posts pra vc comentar. Vá aos outros, né?
    Beijo!

    Responder
  30. Jorge C. Reis comentou, em 27/06/2008:

    Desculpe o off topic mas é só para avisar que tem uma prenda para vc no meu blog.
    Pode ir lá ver ?
    Abraço
    Jorge

    Responder
  31. André Martins comentou, em 27/06/2008:

    Letícia,

    a morte de D.Ruth se constitui numa perda irreparável, realmente. Era mulher comprometida com o povo, se esforçava para fazer do Brasil um país mais justo. Era humana, simples, sonhadora, idealizou uma nova história pra o nosso país. Espero que no futuro, não muito distante, colhamos o que D. Ruth semeou de maneira apaixonante.

    Excelente o Blog. Muito bom mesmo!
    Parabéns!!

    http://semfronteirasnaweb.blogspot.com

    Responder
  32. Molly comentou, em 27/06/2008:

    Lelê

    O que vc acha de uma parceria?

    Vou te add nos meus links, se vc tiver algumaimagem, é só me avisar.
    bjs

    Responder
  33. abutre236 comentou, em 28/06/2008:

    Foi um exemplo de integridade nesses tempos tão estranhos que ninguém sabe o que é integridade.

    Foi um exemplo de primeira-dama. Impossíbvel comparar com anossa atual primeira dama.

    Responder
  34. berenice comentou, em 01/07/2008:

    Entre tantos posts interessantes deste seu blog, escolhi este para deixar registrada minha admiração pela D. Ruth.

    Mesmo sem admirar quase nenhum político e nem ter sido muito simpática à gestão de FHC, acho que ela fez uma grande diferença neste cenário árido de esperanças.

    Bjs e parabéns pelo blog!

    Responder

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