Cada vez que ele chupa uma laranja

Criado por Letícia Castro em em 09/08/2015

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Para chupar laranja, você precisa, além da fruta, de uma faca bem afiada. Se for meio serrilhada, melhor ainda: desliza pela casca mais suavemente e não danifica a parte interna. Você deve ir descascando a laranja em um contínuo, do topo para a base, com a mão firme e delicada, como quando retira a pele da batata. Uma, a esquerda ou direita, conforme você seja destro ou canhoto, deve segurar o fruto inclinado, meio que a 45o. (como fica a Terra, quando gira em torno do Sol), enquanto a outra vai contornando a superfície da laranja, despindo a nobre dama. Retirada a casca, você deve cortar a “tampinha”, que é partir a laranja não pela metade, mas em cerca de 1/4 dela, pela parte de cima.

A tampinha sempre ficava comigo quando eu era criança. “Pai, me dá a tampinha?”, “Não!”, “Ô, pai, me dá a tampinha!”, “Essa menina quer tudo o que eu tô comendo!”. E era assim como eu supria a minha cota diária de vitamina C. O seu Ronaldo, exímio chupador de laranjas, tem esse hábito desde que me conheço por gente: acabou de comer, ele devorava duas, quantidade que agora foi reduzida pelo surgimento do diabetes. Sempre com essa técnica, esmerilhada à perfeição. Coisa de virginiano. Não sei quando ele começou a “chupar laranjas” (sim, essa é a expressão correta), mas, a essa altura, acredito ser um problema de TOC familiar: minha avó, mãe do Nego, comia bananas. Meu pai chupa laranjas. Uma subia escadas, aos 90 anos, como o Ligeirinho. O outro, não me lembro de tê-lo visto com gripe na vida.

Eu não tenho a “minha fruta”. Gosto de bananas, gosto de laranjas. Faço smoothies deliciosos com banana congelada e fiz um bolo de laranja diet para ele há alguns dias, do qual ele comeu a metade. Pela segunda vez, nestes 42 anos, fui idiota o suficiente para não estar ao lado dele hoje. Conversamos a respeito, mas fui dormir chorando (na verdade, ainda estou), de vontade de estar lá. “É só uma data comercial”, ele me disse, enquanto eu apanhava a mala para ir para a rodoviária, há uma semana. Não é. Cada momento em que eu testemunho o meu pai chupando uma laranja é como assistir ao Pavarotti, numa noite perfumada da primavera italiana, em um daqueles teatros romanos à luz do céu estrelado e chorar, irresistivelmente, em Nessun Dorma (desafinado ou não). É ouvir o coral de Herz und Mund und Tat und Leben, a cantata 147 de Bach, que alguém, acertadamente na minha opinião, batizou de “Jesus, a alegria dos homens”, sempre que Deus acha a graça de atender a um de nossos apelos sinceros. É música para mim cada vez que ele aperta a redonda e o suco emerge e ele suga esse néctar nutritivo que ele tanto aprecia. Não vou mais lamentar. Sempre estamos juntos e ficar de mimimi hoje seria macular esses instantes com um sentimento que não existe entre nós dois.

Pai, daqui a alguns dias estarei aí de novo. Estou morrendo de saudade. Pense em mim quando chupar a laranja de hoje, tá?

Amo o senhor.

Feliz Dia dos Pais, meu gordo. <3

Comentários (2)
  1. Ana Lucia Niclau comentou, em 11/08/2015:

    que bacana! gostei bastante do artigo, bjs

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