A encantadora de pássaros

Criado por Letícia Castro em em 14/12/2010

Stevie diria: “Isn’t she lovely?”

Eu cheguei até ela com as duas asinhas quebradas. E a vontade de voar era tanta que eu só pensava em me atirar de um penhasco, fosse para ganhar novas forças no voo, fosse para cair de vez, assim como Ismália, do alto da torre. Ela percebe de longe quem está com as asinhas quebradas, mas o coração gritando por vida. Esse é o seu business, tipo Mary Poppins (“feed the birds…”).

Com o tempo, foi ganhando minha confiança. A mão generosa que se estendia era cálida e o meu coração respondia. “Psicodrama?”, pensei, “Será que ela é terapeuta? Eu bem que precisava de terapia…” Não fazia a menor ideia do que fazia uma psicodramatista, mas aceitei o tratamento.

Não faltei a uma sessão, na verdade. Alguma coisa me dizia que eu precisava ir e ela lembrava que eu estava pagando caro por isso. “Aliás, vocês já estão preparando a sua independência financeira? E a alimentação de vocês? Vocês estão presentes e atentos o tempo todo? E o tempo, como é que estão administrando o seu tempo?” Ave! Que pessoa intrometida! Mas, por que ela se importa tanto? Who cares anyway? E as asinhas iam se enchendo de band-aid.

Eu tinha medo até de abrir a boca, porque ela punha o dedo na ferida sem dó. “Dói, professora, você sabia?”, gritava dentro de mim. “Me deixa aqui quieta, eu só preciso tentar uma vez, se as asas não abrirem…”

Aí, ela me chamou de “amiga”, só para começar a pedir “pequenos favores”. E porque ela é mandona mesmo. Mestre, né? Quer dizer, doutora. Simbólico. “Letícia querida, você poderia fazer aquele um? Letícia querida, você poderia fazer aquele outro?” E a bobona atendia aos pedidos feliz. Corria para o computador e até se esquecia dos membros falidos.

“Você poderia dar uma aula desse tema?” Aula na Cásper??? Claaaaro!!! A primeira de muitas. Com a asinha direita já reestabelecida, lá fui eu e preparei uma explanação sobre “mapas mentais”. Ótimo!!! A parte mais bagunçada de mim teria que explicar como se organiza e se sistematiza a ela mesma por uma pessoa que caía no chão, em plena av. Paulista. Era o ápice da minha falta de equilíbrio nos seis sentidos.

Com uma asa rota e o creco em frangalhos, dei a dita aula, que deve ter sido a pior da minha vida. Eu nem conseguia enxergar o que eu mesma tinha escrito no PowerPoint. A cegueira dos olhos me sacudiu a alma, ali, descoberta. O jeito foi me atirar, não do prédio, mas nos braços dos “meus alunos”, meus amigos queridos que participaram da aula com entusiasmo. Ela, inclusive, tomando notas. Uma amiga, depois, até comprou uma canetinha de quatro cores. “A canetinha do mindmap“. Parei de cair na Paulista.

O fim do ano foi chegando e, proporcionalmente, aumentava a cumplicidade entre os novos amigos da classe. Comecei a confiar de verdade, a ser eu mesma. Disse para todo o mundo que minha única ambição era ser uma “moça boa”, como se algum dia na vida eu tivesse sido uma “moça má”. E, mais uma vez, outra amiga me salvou: “Ao contrário do que disse a Letícia, eu estou em um momento em que não tenho medo de errar”. Pensei comigo: “você não sabe como eu fui cruel, mas obrigada por me lembrar que também sou humana.”

Aí, pintou uma oportunidade de estreitarmos os laços mais ainda, a encantadora e eu. Eu disse: “Ai, tomara que dê certo”, para uma combinação que pretendíamos fazer, ao que ela respondeu, profética: “Se tiver que ser, vai dar”. Aliás, esse povo é chegado num profeta, é Moisés aqui, Elias ali, Ezequiel acolá… Tem até mulher: Sarah, Débora, Miriam… Jesus de Deus! Se eu não tivesse soltado a Sua mão, não teria quebrado as asas… E nem o orgulho, então devo agradecer.

O tempo passou. Fiquei triste que o “se tiver que ser” não foi. Não foi? Té parece! Fase 2 do tratamento: “Agora, ela vai estar sempre aqui conosco”, disse a encantadora para outro pássaro que já sabe voar. E, naquela noite mágica, entendi tudo. Juro que pensei que em algum momento fosse encontrar um caldeirão, cheio de poções benfazejas. “Fada!”, disse ela no outro dia, descobrindo já o título que teria este texto: Fada-madrinha.

Eu não sei se bruxa ou fada ou o quê. Na verdade, é um je ne sais quoi que invade a nossa vida e não tem mais volta. De qualquer forma, agora tenho acesso privilegiado ao viveiro e ele tem janelas grandes e abertas para todos os lados. A gente pode voar e voltar quando quiser. Também é cheio de plantas e vida e ela desliza dançando, pelos quatro cantos.

Eu vejo Ísis, Afrodite, Ester, Maria e a própria Pacha-Mama. Eu vejo uma força que se resolve por si só e sai, maternalmente, em busca de asinhas quebradas. Apenas seguimos, sem saber o rumo, mas há um sopro divino em nossos ouvidos. Então, saltamos com fé.

Minha asinha esquerda ainda não está totalmente refeita. Mas, já consegue segurar o papel onde escrevi este texto. Desconfio que dentro em breve, vou poder cair de novo. Não no asfalto duro da Paulista, mas daquele precipício, livre e segura pelos ares.

“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho

Eles passarão…

Eu, passarinho!” (Mário Quintana)

Para a minha professora, amiga e fada-madrinha Liana Gottlieb – the bird whisperer.

Comentários (17)
  1. Jorge Purgly comentou, em 14/12/2010:

    Interessante seu artigo, tem um certo tom poético.
    Um abraço,
    Jorge

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  2. Jackie Freitas comentou, em 14/12/2010:

    Olá Letícia querida!
    Linda, linda essa homenagem!
    Pessoas como a sua querida Liana são verdadeiros anjos que surgem na vida de outras pessoas com esse grande dom… Espero que em breve você possa alçar o seu esplêndido vôo, seguro e feliz e ganhe o infinito do céu!
    Grande beijo…Parabéns!
    Jackie

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  3. LETÍCIA CASTRO comentou, em 14/12/2010:

    Jackie, eu fiquei maravilhada com o teu comentário. Muito obrigada mesmo. A Liana merece tudo isso e muito mais, é um ser único, de verdade.

    Outro beijão pra vc!

    Jorge, que chique, “tom poético”, quem me dera! :) Mas agradeço a tua consideração.

    Bjs e volte sempre!

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  4. Geraldo comentou, em 14/12/2010:

    Olá Leticia,

    Tive um professor na graduação que me influenciou muito (tanto que o escolhi para ser meu orientador no meu TCC). Ele falava que pensar não cheira e nem doi, mas é necessário para tu poder voar sozinho, sem amarras e sem viseira.

    Lembro-me dele até hoje… e das suas lições…

    Deste seu amigo de “asas tortas”

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  5. Max Martins comentou, em 15/12/2010:

    Oi, Letícia

    Concordo com a Jackie, linda homenagem!

    Fico feliz de saber que está tratando de suas “asinhas”. Cure-as o mais rápido possível =)

    Bjs

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  6. Amanda comentou, em 15/12/2010:

    Concordo que a Liana tem esse dom, de tocar a vida das pessoas. A gente ali do fundão brincava que essa aula era uma “terapia em grupo”. Tudo o que ela nos trouxe pode ser aplicado para nossa vida, nosso crescimento pessoal.
    Lindo texto, Letícia!
    Bjs!

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  7. Ana Alice comentou, em 15/12/2010:

    Olha menina, eu, que lá do fundo da sala nem sabia de metade da missa, ontem não tive tempo de dizer, então o digo hoje: nessas coincidências nada coincidências da vida, usei a SUA aula para preparar um dos trabalhos (o de abordagem) que a professora pediu. Sem saber de tanto elo entre vocês, taí mais um que vocês construíram! Fica o registro. Um feliz fim de ano e um 2011 supimpa pra você.

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  8. Anonymous comentou, em 15/12/2010:

    Oi, Letícia!
    Adorei o texto. Realmente, a Liana merece todas as homenagens. Ela conseguiu fazer as nossas noites de terças, apesar das atribulações do dia, serem leves e adoráveis.
    Ela também fez a gente não apenas pensar em dar aula, mas, principalmente, a repensar nas nossas vidas em vários aspectos.
    Com os trabalhos em grupo, ela também fez a gente fazer novos amigos.
    Sem dúvida, ela é um pessoa especial.
    Grande beijo,
    Renata Passos

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  9. Patricio comentou, em 15/12/2010:

    Muito bonito e encantador. Parabéns pelo belo texto!!! Siga voando…

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  10. Maga comentou, em 15/12/2010:

    Fiquei profundamente emocionada com o texto, provavelmente porque ele retrata muito do que eu mesma senti quando conheci a Liana, também como minha professora na pós-graduação.

    Eu não estava com as asas quebradas naquele tempo. Eu nem tinha mais asas!

    Estava vivendo numa espécie de limbo e tentando manter o nariz acima da água escura. Eu não queria ajuda de ninguém, a propósito. Mas a Liana não deu bola para isso, não, e me puxou pela ponta do nariz. Eu resisti, eu sou teimosa, mas ela á muito mais.

    De lá para cá, meu nariz não está servindo apenas para me manter viva. Ele anda atrevido. Vai se mentendo aqui e ali, fazendo coisas que antes eu nem pensaria em fazer. É que a Liana grudou umas asinhas nele.

    Beijos a todas.

    E Letícia, meu anjo, que texto lindo você tem!!!

    Maga

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  11. LETÍCIA CASTRO comentou, em 16/12/2010:

    Geraldo, meu amigo fiel de sempre, estas pessoas são anjos sim, com um desígnio muito especial e a gente deve ser agradecido pela sua interferência e sair por aí contando que eles existem, não é mesmo? Fico feliz de saber que vc tb foi tocado. ;)

    Max querido, pois é, graças a Deus, depois do inverno mais sombrio da minha vida que ficou em um passado longínquo, a vida finalmente voltou ao normal. Não poderia estar mais feliz e acho que Deus coloca essas experiências no nosso caminho para que saibamos valorizar o que é realmente bom. Enfim, obrigada pela força de sempre, vc sabe que tenho muito carinho por vc. ;)

    Responder
  12. LETÍCIA CASTRO comentou, em 16/12/2010:

    Meus companheiros de classe e amigos do coração,

    Vcs não sabem a alegria que sinto de ter vcs na minha casinha! Como disse para a Renata por email, é para abrir a porta da geladeira e colocar os pés na mesinha de centro. rs

    Fiquei encantada com o comentário de vcs e não é que nossas noites de terça eram mágicas mesmo? Até o último instante, com aquela palestra maravilhosa sobre CNV e aquele vídeo inesquecível do Winston Marsalis com o Seiji Osawa. Pure magic!

    Amanda, adorei o De Fretado e vc tem razão: na chuva, é melhor desencanar e ir a um barzinho. rs Ah, e aquela sua “turma do fundão” era o que dava o toque “estamos na escola” da classe. hehehe Adorei.

    Ana Alice, agora vc sabe onde vir me avisar quando houver o próximo megafestival de punk brega nerd samba progressivo, né? É Milhouse na veia! rs Ai de vc se se esquecer de mim! :D

    Rê, vc já se instalou, então tô sussa. rs Já comeu todo o chocolate? Boooom, né? rs

    Pati, mi amigo querido, pode deixar e espero ter meus companheiros de voo por muito tempo ainda, viu?

    Beijocas mais que especial para vcs!

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  13. LETÍCIA CASTRO comentou, em 16/12/2010:

    Maga, minha mais nova amiga querida, vc está no texto, vc viu? Eu desconfiei mesmo e quando te vi ali, toda desenvolta, pensei: ahá, e não é que funciona mesmo? No dia em que a Liana resolver “passar a conta”, estamos perdidas. Shhh, melhor não dar ideias. ahuahuahuahua

    Megabeijo pra vc!

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  14. LETÍCIA CASTRO comentou, em 16/12/2010:

    Ana Alice, eu fiquei bobona aqui com o que vc disse sobre a aula do mindmap. Eu estava tão desorientada naquele dia, mas o coração de vcs estava atento. Obrigada, viu?

    Bjs!

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  15. Folhetim Online comentou, em 17/12/2010:

    Se todos tivéssemos alguém como você teve, talvez poderíamos ir mais longe do que fomos um dia. Sei que não temos tempo pra subir, nem devemos subir mais do que devemos, de acordo com nossas capacidades, mas tem horas que a ansiedade é maior e acaba cegando a distância.

    Parabéns pela tua conquista, Letícia.
    Sucesso sempre!
    Beijos

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  16. LETÍCIA CASTRO comentou, em 22/01/2011:

    Fá, olha quanto tempo demorou para eu responder ao teu comentário. Eu tinha certeza de que já tinha feito isso. rs Me desculpa. :)

    Vc tem razão. A ansiedade, a impaciência, tudo isso atropela os desígnios da vida, os presentes de Deus. Ainda ontem falamos sobre isso, adivinha onde? Na casa da Liana, óbvio! rs

    Deixe a água rolar, let go. Tudo o que você mais quer virá no tempo certo e sabe por que vale a pena esperar? Porque vem sempre muito, muuuuito melhor do que aquilo que desejamos.

    Beijocas carinhosas para vc, vc é muito querido, viu?

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  17. Letícia Castro comentou, em 10/10/2013:

    Só queria deixar um depoimento de arrematação neste fórum tão querido. Amigos, asas consertadas. E nasceram mais duas de dar inveja ao próprio Hermes! É só calçar meus tênis mágicos, tendo o Ibirapuera por cenário, que tudo pode acontecer. Amo vcs! Obrigada por estarem aqui. ;)

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